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Rosas e Champanhe

por Paula Campos
Fotografia: Largo do Paço e rua Primeiro de Março – Marc Ferrez (Acervo Instituto Moreira Salles).

Paula Campos nasceu em Coimbra e os sonhos no mundo. Os pés mantêm-se na cidade, os sonhos continuam por aí. Cedo se apaixonou pela leitura e pela escrita, pelo que fez profissão destas vontades. Para além de ser professora de Português, dinamiza um clube de leitura e um de escrita online. Já organizou atividades literárias na Biblioteca Municipal de Coimbra e escreve para um jornal local. E os sonhos sempre na leitura e na escrita.


11h00m. A campainha soou tímida e ansiosa, como em todos os domingos dos últimos sete meses. Dois minutos depois — o tempo perfeito que impunha a elegância — novo toque, desta vez também tímido, mas com sabor a desalento. O mesmo silêncio de antes. 

Alípio — aliás, o Senhor Doutor Alípio Vaz de Barbeitos — pareceu mirrar o corpo, que trouxera de porte ereto e decidido, baixou os olhos e cumpriu o ritual dos últimos dois meses: depositou, no chão de mármore rosada, junto à porta, uma garrafa de Dom Perignon com uma rosa vermelha cruzada por cima. Depois, cabisbaixo, dirigiu-se ao outro lado do largo, onde se sentou num banco de pedra, abrigando-se da quente sombra daquele julho ardente. Tentava, também, enganar o seu brio, imaginando que se abrigava dos curiosos olhares domingueiros, por detrás das janelas.

Era inútil. Já todos se tinham habituado àquela presença e os que ainda davam por ela suspiravam, abanavam a cabeça e prosseguiam o seu domingo. Acreditavam que o fim do suplício do homem e o de todos os moradores do luxuoso bairro estaria para breve, segundo a sentença tão aguardada do juiz.  

Ali ficou, durante os quarenta e cinco minutos habituais, o suor escorrendo-lhe pelos estafados oitenta e sete anos. De olhos fixos na porta em frente, a imaginação tornava-se realidade, novamente. 

A primeira vez tinha-o ali levado o desígnio do destino, como gostava de pensar. Um engano ao virar o automóvel na última cortada, em vez da penúltima, fizera-o estacionar para tomar uma bebida, no café que anunciava chocolate quente. Viu-a assim que entrou. Morena, de longo e espesso cabelo negro, lábios carnudos e olhos de corça. Conversava com duas mulheres, também no fim dos vinte anos. Discretas, falavam baixo, enquanto comiam as torradas e bebiam os galões. Pouco mais se demoraram e saíram, depois de pagarem, por uma porta lateral. 

Um impulso levou-o a seguir, atabalhoadamente, a rapariga, saindo para o janeiro cortante, seco e soalheiro. Atravessou um pequeno e ventoso túnel, atrás das vozes, e deparou-se com o amplo espaço, rodeado de edifícios. Discretamente, ficou por ali até ver as mulheres entrarem no spa. Incognitus Spa. Sentado no banco que passaria a acolhê-lo todos os domingos, dali a cinco meses, fascinou-se com a imagem da vitrine: uma porta entreaberta permitia vislumbrar, na penumbra, uma mão feminina com unhas vermelhas sobre umas costas masculinas oleadas, ao lado uma mesa com dois elegantes copos meio cheios. A breve deceção que sentiu ao perceber onde a belíssima morena trabalhava rapidamente se transformou em alegria: a rapariga seria acessível.

Passou, então, a frequentar o Spa, todos os domingos de manhã. Avivou-se-lhe a pele, mas morreu-lhe o coração. Apesar de pagar o dobro para que fossem sempre as mãos de Maribel a tratarem-lhe do corpo, a venezuelana, especialista em Lingam e Yoni, nunca acedeu a fazer-lhe uma massagem Nuru. Por esta altura, Alípio sabia tudo sobre massagens. Também nunca acedeu aos convites para se encontrarem a sós fora do trabalho, que, afinal, não envolvia sexo. Alípio apaixonou-se. Perdeu toda a compostura. Chorou, implorou, ajoelhou-se, prometeu mundos e fundos, ameaçou matá-la e matar-se. Andressa, a gerente do espaço, acabou por proibir-lhe a entrada. 

Sem alternativa, o Dr. Alípio iniciou o ritual do Dom Perignon, o espumante preferido de Maribel, e da rosa Samourai, a rosa brasileira preferida da rapariga.

Todos os domingos de manhã, dentro do Spa, Maria Ángeles, assim se chamava a rapariga, tremia ao ouvir a campainha. Embora as colegas a tranquilizassem, contando-lhe vários outros casos idênticos que conheciam, a venezuelana, nova no ofício, perguntava-se o que faria se algum colega do mestrado descobrisse o que fazia e quem lhe criaria o menino que tinha ficado em Caracas, com a sua velha avó, caso o homem a matasse. Sem outra solução, a gerente aconselhou-a a arranjar outro emprego. Mas os únicos que conhecia envolviam homens bem piores do que aquele. Maria Ángeles desesperava.

Lá fora, o Dr. Alípio prosseguia o ritual. Levantou-se do banco às 11:45h em ponto. Às 12h00m, estava, como sempre, em frente da igreja, dentro do carro, esperando D. Virgínia Vaz de Barbeitos, que saía da missa, rezada, abençoada, purificada. 

Impacientava-se. Desde há cerca de um mês que a esposa insistia em sair por uma porta lateral e lhe aparecia, o rosto vermelho, as mãos trémulas e o coração visivelmente a sair-lhe pela boca, esbaforida nos seus ainda frescos setenta e oito anos. Cheirava a perfume novo. Rejuvenescia. A pele avivava-se-lhe durante o tempo da missa, era notório.

O Dr. Alípio pensou que também ele precisava de começar a ir à igreja. Talvez o velho padre, confessor quase diário da esposa, lhe aliviasse o sofrimento. O pensamento a fugir-lhe para a jovem venezuelana, nem se apercebeu da rosa que D. Virgínia dissimulava na carteira fechada apressadamente.


Fotografia: Largo do Paço e rua Primeiro de Março – Marc Ferrez (Acervo Instituto Moreira Salles).

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